sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

A PERCEPÇÃO DO DIREITO E DO DEVER

Dentro do contexto em que este trabalho está inserido, não me alongarei muito em questões de ordem técnica mas procurarei, ainda que sinteticamente, relacionar os meus conhecimentos com os Núcleos que me são sugeridos.
O futebol é o desporto mais praticado em todo o mundo e, por isso, não admira que seja o que desperta mais paixões – por vezes de forma exacerbada – e aquele que, por ser aparentemente simples de entender, mais polémicas levanta junto da opinião pública e dos órgãos de comunicação social que, queiramos ou não, são incapazes de manter opiniões despidas de “clubite”. Mas o futebol é bem mais complexo do que aquilo que os seus admiradores pensam. O futebol é arte, é ciência, é espectáculo plebeu e aristocrático, é “a inteligência em movimento” – como dizia o Mestre Pedroto.
Para ser praticado ao mais alto nível, o futebol deverá assentar num grandioso e complexo bloco de conhecimentos: Técnica, Táctica, Estratégia, Psicologia, Preparação Física, Fisiologia Desportiva, Medicina Desportiva e Leis do Jogo, são as principais disciplinas que um treinador de nível IV deverá dominar, em alguns casos com a ajuda de especialistas em áreas específicas. Pela minha experiência como praticante mas principalmente como treinador, explicitarei de seguida o que me parece mais relevante na condução de uma equipa de futebol ao mais alto nível, situando-me em 2004 – aquando do meu regresso ao Boavista F.C.
Evidentemente que um “manco”, por muito bem preparado psicologicamente, jamais será um jogador de futebol, mas a psicologia assume contornos decisivos nos índices de alto rendimento de qualquer grupo, desportivo ou não, porque estará sempre perceptível em todas as acções a executar.
Sempre que era apresentado a uma nova equipa, fazia uma série de exigências das quais destaco a obrigação das atletas se apresentarem em fato de treino, e porquê? Porque se a nossa relação de trabalho era desportiva e se o ambiente onde decorria a apresentação era o ginásio, fazia todo o sentido que não só elas como eu, nos apresentássemos equipados a preceito. Durante a apresentação, quando uma atleta era chamada, teria que se levantar e identificar-se, além de responder a quaisquer perguntas que eu lhe fizesse. Nessa mesma sessão, depois de me dar a conhecer mais em pormenor, eu apresentava-lhes aquilo a que chamava de C.R.A.R. (Caderno de Regras de Alto Rendimento) que continha um pequeno conjunto de itens essencialmente respeitantes a disciplina e convivência saudável e que deveriam ser integralmente respeitados, sem qualquer margem para dúvidas. Depois de lhes dar tempo a que lessem o Caderno, perguntava, uma a uma, se estavam ou não de acordo ou se tinham alguma questão a levantar. Uma única vez, determinada atleta teve a coragem de me dizer que não estava totalmente de acordo com algumas das
Candidato: 242/08 Página 60
AUTOBIOGRAFIA de Júlio Santos 2009
regras: “Não concordo em ter que me apresentar nos treinos, impreterivelmente, à hora marcada. Não ganho para isso.” – Disse ela, com ar de enfado. Apesar de ser uma atleta internacional, dispensei-a imediatamente, com a concordância dos directores presentes e perante a estupefacção das restantes colegas. A minha decisão, inabalável, caiu no seio do grupo como um aviso e reforcei-o dirigindo-me às outras:
– Não admito quebra de regras disciplinares; se, em trinta atletas, apenas uma está em desacordo, claramente também está a mais. Ou ela será melhor do que vós?
Obviamente que deixei passar um raciocínio lógico45 da filosofia Aristotélica e, assim, as atletas começaram a ser “moldadas” psicologicamente.
Daí para a frente tudo o que eu dissesse, ou fizesse, seria pautado por uma rigorosa coerência na defesa dos enunciados no Caderno. Eu próprio teria que ser o primeiro a demonstrar a consistência e a lógica dos princípios éticos publicamente assumidos e exigidos. Expunha-me, propositadamente, a desafios que rebentavam com as práticas normais aquando da apresentação de qualquer equipa a um novo treinador. Era comum – e compreensível – que os responsáveis directivos fizessem um relatório sobre as atletas: se eram suplentes ou efectivas, se tinham muitos ou poucos incidentes disciplinares, se eram pobres ou ricas, estudantes ou trabalhadoras, etc. Ao meu estilo, exuberante e convicto, na palestra que antecedia o primeiro treino, eu afirmava:
– Não preciso de qualquer relatório. O que vocês foram, eu não me preocupa saber; o que sei é que a partir de hoje sereis diferentes, para melhor ou para pior. Tudo depende de vós. Por isso também não me interessa desvendar quem era ou não titular, suplente, internacional… Um novo grupo nasceu hoje; serei vosso amigo, colega, pai ou irmão, ou até inimigo… mas jamais pactuarei com vícios e desperdícios. De uma coisa tenham a certeza: é a mim que devem seguir. Quem não tiver “pedal”, arreia!
Era meu dever elucidá-las também quanto aos seus Direitos e Deveres (não apenas os do Caderno), como seres humanos e como desportistas. Acredite-se ou não, nunca algum dos meus antecessores havia sequer, ainda que de forma aligeirada, abordado essa questão.
– Ora prestem atenção, – dizia eu, sorridente – o primeiro treino será dedicado aos vossos Direitos e Deveres. Sabem quantos e quais são os vossos Direitos? (...) Então?
– São bastantes, mas não os conheço a todos – respondeu a Sandra, capitã da equipa.
– E sabem quantos e quais são os vossos Deveres?
Todas desataram a rir, mas ninguém falou. Depois de eu insistir, a Sandra respondeu, corada:
– Mister, o nosso Dever é fazer tudo o que nos manda!
– Ai é? Ai é? Então se eu te ordenar que rapes o cabelo para poderes cabecear melhor a bola, tu rapas? Se eu te disser para fazeres o pino ali na Avenida da Boavista, tu fazes?
O silêncio tomou conta do balneário.
– “Apenas há um Dever, amigas, o de poderem ser felizes!”46É vosso Dever lutar sempre pelos vossos Direitos que, adquiridos, resultam do vosso Dever. Percebem?

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